SAMUEL E A NECROMANTE DE EN-DOR: DIFICULDADES HERMENÊUTICAS

Bruxa de Endor, D. Martynov.


Por Thiago da Silva Pacheco*

A passagem é relativamente conhecia, e de consequências polêmicas.

Saul estava diante de uma guerra inevitável. Teria de enfrentar o temível exército filisteu, contra o qual suas tropas não eram páreo.

Naqueles tempos angustiantes, os profetas não mais traziam-lhe vaticínios, e os métodos divinatórios dos sacerdotes também nada lhe respondiam acerca do que fazer na guerra.

Desesperado, ele ordenou a seus servos que lhe levassem a uma necromante. Seu intento: trazer o eminente profeta Samuel dentre os mortos, para que lhe pudesse orientar naquela crise.

Numa madrugada, dentro do refúgio da feiticeira, o evento se deu, e encontra-se narrado em 1 Sm 28.

Trata-se de um texto em ampla disputa por espíritas e protestantes. Os espíritas apropriam-se dele como "prova" de que a mediunidade é demonstrada pela própria bíblia. Uma postura não surpreende (inusitado seria o contrário...).

Já os protestantes são, com raras exceções, categóricos: era demônio! Foi uma feiticeira que chamou, e feiticeiros "mechem com demônio". Era espírito de morto e, segundo Eclesiastes, "os mortos de nada sabem"; além disso, Paulo (sic) na Carta aos Hebreus disse que "após a morte, segue-se o juízo". E, para, completar, segundo a Lei de Moisés, necromancia é proibido.

Só "poderia" ser "diabo", portanto...

Não tenho aqui nenhuma pretensão de esgotar o assunto numa simples postagem de blog. Mas gostaria de chamar a atenção para alguns detalhes textuais e dificuldades hermenêuticas que, me parece, por vezes passam desapercebidas.

Assim, o leitor não deve esperar conclusões peremptórias no final desta postagem, mas sim apontamentos e alertas quanto ao texto.

Antes de mais nada, não adianta explicar a narrativa a partir de Eclesiastes 9.5 ("os mortos nada sabem...") ou de Hebreus 9.27 ("após a morte-, segue-se o juízo"). Nem através da parábola do Rico e do Lázaro (Lc 16:19-31). Isso por um motivo simples: o autor de 1 Sm não leu estes livros e nem teve contato a cultura e mentalidade na qual foram escritos. Eclesiastes, a Carta aos Hebreus e o Evangelho de Lucas foram escritos, no mínimo, quatro séculos depois.

Não podemos cobrar de um autor o que ele não poderia escrever, mesmo que ele esteja inspirado que ele esteja inspirado. Isto porque a inspiração transmite a revelação dentro da capacidade, estilo e temporalidade do autor.

Neste sentido, antes de mais nada, devemos entender o que o autor de 1 Samuel quis dizer, dentro de sua perspectiva religiosa e cultural. 

1 Samuel é parte de uma produção textual mais ampla, chamada de História Deuteronomista. Resumidamente, esta produção textual envolvia a teologia dos escribas de Jerusalém e a propaganda da dinastia de Davi no século VII a.C.

Destarte, o autor pretendida demonstrar o ocaso do reinado de Saul - fundador da dinastia rival - e a degeneração de sua piedade como servo de Javé.

A consulta à necromante acentua então esta espiral de decadência. Abandonado por Deus, só restou ao outrora grande rei e escolhido de Deus recorrer a uma necromante na calada da noite, violando a Lei de Moisés antes de morrer na batalha.

E, mesmo pela necromancia, ele foi reprovado (1 Sm 28:16)...

Esta parece ser a mensagem básica. O autor não se propõe a discutir vida após a morte. Nem as supostas "artimanhas de satanás para enganar alguém".

Muito menos pretende o autor demonstrar possibilidade de mediúnica de consulta aos mortos, conceito que lhe seria anacrônico e ao qual se oporia independente de qualquer ressalva kardecista de que "consultar pode, não podia naquelas circunstâncias", já que considerava tal prática inequivocamente como abominável à Deus (Dt 18: 11,12).

Além de não se propor a narrar estas coisas, o texto parte do princípio que o leitor compreende minimamente o fenômeno do qual narra. Dai a ausência de maiores explicações.

Mas, dentro do contexto da narrativa, como era entendida a questão da consulta aos mortos?

Voltemos ao pedido de Saul. A necromante é imbuída a tarefa de "fazer subir" (1 Sm 28:8) um bā·’ō·wḇ, que seria uma espécie de "espírito familiar", o espirito de um ancestral de uma determinada família ou tribo.

Havia cultos aos bā·’ō·wḇ, realizados por determinados grupos e clãs a seus veneráveis ancestrais, semelhante ao culto aos mortos descrito por Fustel de Coulanges na Antiguidade e atualmente no México, por exemplo.

Saul, que teria se tornado um discípulo profético de Samuel (1 Sm 19:21-14), poderia ter, dentro da crença do culto aos bā·’ō·wḇ, o direito de conjurar seu antigo mentor. Tanto é que, ao ver Samuel, a necromante deduz que o homem que veio consultar-lhe era Saul (vs. 12).

O "fazer subir" a que o rei se referia também é elucidativo. Para os hebreus, os mortos habitavam no escuro submundo do Sheol, onde dormiam para sempre. Também é uma analogia direta ao fato das pessoas serem enterradas debaixo da terra ou em cavernas.

Já ouvi pregadores alegarem que a "prova" de que se tratava de um "demônio" e não de Samuel está nas palavras da necromante, que teria "visto subir um ancião numa capa" (1 Sm. 28:14). Ora, se vem subindo, é porque veio de baixo. Se veio de baixo, veio do inferno. Se veio do inferno, era demônio!

Esta interpretação é simplória, desconexa e baseada na lenda de que "o inferno fica lá embaixo" onde"lá oram demônios". Observe-se que esta crendice é medieval, e não se encontra em nenhum texto bíblico!

Quando a necromante diz que viu subir "homens santos" ou 'homens poderosos" (vs 28:13, mau traduzido como "deuses"), o autor quer dizer que ela acordou os mortos de seu sono, fazendo-os levantar-se do Sheol.

São almas erguendo-se dos túmulos, portanto.

Os judeus tem uma interpretação curiosa para a passagem. A necromante teria acordado Samuel. Este teria pensado que o Messias já tinha vindo e começado a ressurreição dos mortos. Ao vê-lo erguer-se do túmulo, Moisés e outros grandes patriarcas começaram a acordar, achando que o Dia do Juízo havia chegado...

Mas, e quanto ao tal fantasma? Era Samuel ou não era?

Bem, para o autor, sim! Ele alega normalmente que Samuel falou com Saul, e chama aquela figura de Samuel sem fazer ressalvas (vs 15-20).

Portanto, para o autor os contatos com os mortos eram possíveis, embora proibidos e abomináveis a Javé. E, ao não explicar isso ao leitor, parece que escreve a um público que tem a mesma perspectiva, capaz de entender a mensagem sem maiores detalhes.

Entretanto...

Há outros elementos intrigantes no texto, que o narrador deixa passar. Eles possibilitam analisar não somente a mensagem pretendida pelo texto, mas o possível fenômeno ali ocorrido.

Primeiro: a necromante não escutou ninguém. Ela viu homens veneráveis erguendo-se do mundo dos mortos (vs. 13).

Segundo: a narrativa diz que, após a necromante gritar e declarar o que viu, entendeu Saul que um o homem de capa era Samuel (vs.14). Ele nada viu, porque pede a necromante que lhe descreva o que ela vê. Depois de achar que estava diante de Samuel, ele se prostrou - mais um indicativo de que se tratava de alguma espécie de veneração aos antepassados.

Terceiro: no diálogo entre Samuel e Saul, ninguém mais participa. Nem os homens, nem a necromante. Não sabemos se eles viram ou ouviram alguma coisa.

Quarto: reparem que, no dialogo, tudo o que foi dito Saul, este já sabia e, possivelmente, já lhe atormentava a algum tempo.

Quinto: observem que Saul é descrito pelo deuteronomista como um sujeito atormentado por espírito maligno (1 Sm 18:10). Além disso, ele estava angustiado, e naquele dia não tinha comido nada (1 Sm 28:20)...

Tratou-se, portanto, da experiência de um homem perturbado espiritualmentedesesperado faminto, que nada mais ouviu do que já sabia em sua atormentada consciência...

Por fim, para aqueles que querem utilizar este texto como demonstração bíblica de mediunidade, há um complicador textual que dificilmente pode ser transposto sem malabarismos anacrônicos: porque os homens santos e valorosos - elohym, traduzido de forma deslocada na passagem como deuses - são descritos habitando o sombrio e melancólico submundo do Sheol, e não em moradas celestiais superiores?

Além disso, como mediunidade, mostrou-se falha a experiência. Afinal, temos três versões para a morte de Saul na Bíblia, e em todas elas o vaticínio do "fantasma Samuel" foi equivocado:

- Saul não caiu nas mãos dos filisteus no dia seguinte, como previsto. A batalha foi, no mínimo, dois dias depois (cap. 29 e 31).

- Em 1 Sm 31 ele se suicida.

- Em 2 Sm 1 -10, um amalecta o mata.

Péssimo resultado para um profeta que, quando em vida e falando pelo Espírito de Javé, acertava com exatidão assombrosa (1 Sm 9 e 10).

....

Enfim, a postagem é longa e, como alertara anteriormente, não esgota o assunto. Mas aqui estão os pontos importantes que, em minha experiência, vejo serem ignorados pelos leitores que se debruçam sobre este relato.

Espero que eles tenham sido de valia ao leitor, porque as duvidas e inquietações para nós, estudantes, são mais valiosas que respostas peremptórias - e vazias!


* Silva Pacheco é doutor em história, Cientista das Religiões e trabalha com Teologia do Antigo Testamento, Judaísmo e História de Israel.

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